segunda-feira, 8 de agosto de 2022

2 - Curtindo o 20

Por Leda Chaves

 Capítulo 2


Por volta de vinte horas, eu tinha saído, no meio de um temporal, para ir buscar meu filho na escola. Ainda perto de casa, ao fazer o retorno para sair do bairro, uma faixa de propaganda, que tinha sido rasgada pelo vento, foi atirada sobre o carro. Enquanto o vento sacudia a faixa, uma das peças de madeira usadas para mantê-la esticada batia com muita força no meu parabrisa. Pensei em voltar, mas algo me fez seguir em frente. Entrei no retorno e continuei. Já estava escuro e, quando eu cheguei na Av. Raja Gabáglia, pensei se devia mesmo ter continuado ou se devia ter esperado o temporal passar. Estava chovendo torrencialmente e o vento sacudia o carro de um lado para o outro, tamanha era a sua velocidade. Quando cheguei perto da escola, percebi que a inundação estava começando porque vi a água cobrindo os pneus do carro da frente, enquanto eu passava na avenida que margeava a barragem. A angústia tornou-se tanta que tive vontade de empurrar o carro da frente com meu para-choque, para sair logo de lá. Deixei, com alívio, a tal avenida e subi por uma rua porque esse, além de ser o meu caminho usual, iria me tirar do perigo da inundação. Continuei e entrei na primeira rua à direita, para retornar e chegar ao portão de saída da escola. Porém, antes de voltar para a avenida, parei em frente a um supermercado e liguei para o meu filho. Perguntei como estava o nível da água, porque aquela via tinha sido feita em um fundo de vale e, por isso, era sempre inundada durante as tempestades. Nessa via, já tinham acontecido muitos afogamentos em alguns trechos mais críticos, em situações como aquela. Ele respondeu: “Não venha, mãe, porque a água já está entrando na escola.”

Então, desliguei o motor do carro e permaneci parada em frente ao supermercado. Além do letreiro, havia um poste de luz e a área estava iluminada. Fiquei lá, esperando o temporal passar para a água baixar e eu poder ir buscar o meu filho. Alguns minutos depois, um taxista parou ao meu lado e pareceu tentar falar alguma coisa comigo. Eu sabia que tinha parado num ponto de taxi mas, naquele momento, não tinha outro lugar para esperar. Eu não abri o vidro para ouvir porque a chuva estava torrencial. Imaginei que ele estava reclamando do lugar e não dei importância. Porém, no dia seguinte, comecei a considerar que, talvez, ele estivesse tentando me avisar do perigo iminente, porque eu me lembrei que, depois de parar ao meu lado, ele tinha dado ré e ido embora.

Não havia passado nem cinco minutos que o taxista tinha saído, quando caiu uma coisa enorme em cima do meu carro. Fez um barulho surdo e ficou tudo escuro. Eu pensei que era o poste porque eu estava parada ao lado de um. A princípio, comecei a gritar feito uma desesperada, mas, logo a seguir, pensei: “Gente, eu estou agindo igualzinho às mulheres dos filmes que só gritam e não fazem nada!” Pensei, então, que tinha que descer do carro. Porém, a minha mente de engenheira ponderou: “Dentro de um condutor oco (o carro) não há energia. Se a alta tensão tiver caído, eu poderei morrer eletrocutada ao descer do carro.” Entretanto, o que tinha caído em cima do carro, começou a espremer a lataria. Escutei algo estralando. Eu não via nada direito e, por isso, decidi arriscar. Se eu permanecesse lá dentro, poderia ser esmagada ou ficar presa nas ferragens. Peguei o celular e desci do carro pelo lado do passageiro. Eu estava sozinha e pensava que não tinha me machucado. Depois que cheguei em casa é que vi um hematoma enorme na coxa direita que tinha sido pressionada pelo volante do carro. Quando saí, no meio da chuvarada, comecei, novamente, a gritar. Eu me sentia meio perdida, atordoada. Não queria acreditar que aquilo estava acontecendo comigo. Porém, gritar não adiantou, não apareceu ninguém. A água, que descia pela rua, cobria os meus pés. Olhei em volta e só vi as luzes do supermercado acesas. Passei por entre os escombros da fachada e entrei. Foi aí, que a alta tensão pipocou lá fora. “Meu Deus, que risco eu corri!” exclamei dentro de mim. Dei graças a Deus por ter sobrevivido pela segunda vez, naquela noite.

Já dentro do supermercado, fui acolhida pelos funcionários do estabelecimento com muito carinho. Inclusive, foi um deles que conversou com a minha irmã ao telefone porque, depois que entrei no supermercado, desabei num chororô, soluçando tanto que não conseguia falar. Depois de algum tempo, a tempestade passou e o meu cunhado desceu e veio ajudar. Estava muito escuro e eu estava tão atordoada, que nem vi o tamanho da árvore que tinha caído sobre o meu e outros carros que estavam estacionados na rua, naquela mesma noite.

A minha irmã, a quem agradeço novamente, me emprestou roupas secas e nos levou para casa. Eu estava completamente atordoada e meu filho, muito assustado. Já em casa, depois de certo tempo, liguei para os bombeiros para informar o acidente e saber sobre a retirada do carro. Eles me informaram que aquela tempestade tinha varrido a cidade do começo ao fim e que eles estavam dando preferência para os acidentes com vítimas e, como eu era a vítima e estava bem, não havia previsão de quando eles iriam lá para remover a árvore para eu poder retirar o carro. Eu estava exaurida, por causa do susto. Então, esperei o dia seguinte. Aos poucos, fui relaxando e acabei dormindo por causa de um remédio que tinham me dado.

Meu cunhado, a quem eu aproveito para agradecer novamente, recolheu os meus objetos pessoais que estavam no carro e ficou lá tomando conta do carro até as duas horas da manhã, quando o dono do supermercado encarregou o seu segurança de tomar conta do local para que os carros atingidos não fossem depredados durante a noite. Eu voltei, no dia seguinte, bem cedinho, ao local do acidente, para cuidar do meu companheirinho. A perda tinha sido total. Quando desci do ônibus, o 20, já com o dia claro, foi que pude ver o tamanho da árvore que tinha caído sobre o meu uninho. 

acidente de árvore caída sobre veículo durante temporal,
Acidente de árvore caída sobre veículo durante
temporal em Belo Horizonte

Tinha, pelo menos, uns vinte metros de altura. Gente, vocês não podem imaginar! Era uma birosqueira. Eu até guardei duas sementes que achei no asfalto, perto da árvore. Depois, acabei jogando-as fora, na tentativa de superar o trauma. O pessoal que veio remover a árvore era muito cuidadoso. O coordenador era muito hábil e guiou os operadores das serras de maneira a não causar mais danos aos veículos atingidos. Quando o reboque levou o uno, eu me despedi dele com muita gratidão por tudo que ele tinha me oferecido até ali.

Remoção da árvore caída sobre veículo durante temporal em Belo Horizonte
 Remoção da árvore caída sobre veículo durante
temporal em Belo Horizonte

No meio de toda a confusão, eu, ainda atordoada pelo susto do dia anterior, tive o meu dia de fama. Dei entrevista para todos os canais locais, enquanto esperava pela remoção do veículo e, mais tarde, para uma revista.

acidente de árvore caída sobre veículo durante temporal
Acidente de árvore caída sobre veículo durante
temporal em Belo Horizonte

acidente de árvore caída sobre veículo durante temporal
Árvore caída sobre veículo durante
 temporal em Belo Horizonte

 A diretora acionou o seguro da escola. Naquela época, eu não tinha o meu próprio seguro para o carro. Um mês depois do acidente, fui devidamente indenizada. A manhã seguinte ao acidente foi a última vez que eu vi o meu companheirinho: um uno 2003, quatro portas, cor prata. Lá se foi o meu amigão que nunca tinha me deixado na mão, nem mesmo naquele momento. Ele aguentou firme enquanto o peso da árvore apertava a lataria e, por isso, eu tive tempo de pensar e descer. O peso da árvore tinha continuado a esmagar o carro e, se eu tivesse ficado lá dentro, teria me machucado gravemente e, talvez até, tivesse ficado presa nas ferragens. Aproveito para reiterar meus agradecimentos ao colégio que me indenizou e, também, a todos que me ajudaram, naquele dia e após, a superar essa e todas as demais perdas que sofri naquele ano.
 
Pois é, 2009 foi um ano de perdas, algumas irreparáveis. Comecei perdendo o emprego, em maio daquele ano e ainda tive que brigar pelos meus direitos. O diagnóstico da doença do meu marido saiu dia três de novembro e ele faleceu por causa de um câncer de pulmão fulminante em vinte e cinco de dezembro daquele mesmo ano. Quando chegou o reveillon, eu era só um caquinho de gente. Emagreci quatro quilos durante os cinquenta dias em que o meu marido murchou como uma flor até morrer. Foi muito triste, para mim, ver a pessoa que eu amava definhar daquele jeito. Eu, que tinha aguentado firme e forte enquanto ele foi vivo, desabei depois da sua morte. Não tive a menor condição de fazer nada durante uns três meses. Ficava em casa, tentando me recuperar e seguir em frente até porque eu não tinha outra escolha. Meu filho ainda precisava de mim e a vida continuava.

Foi assim que apareceu a Margarida, pronta para viver uma etapa que seria bem diferente de tudo que eu conhecia até ali.


2 comentários:

  1. Que relato emocionante. Nossa! Por quantas coisas você passou, hein!

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    1. A emoção vai continuar no capítulo 3! Cadastre o seu email para ser avisada das postagens.

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